terça-feira, 5 de outubro de 2021

Bem Viver, o antigo novo modo de conviver.

João Crispim Victorio[i]

Todo ser vivo que habita nossa casa comum tem que se relacionar com outros seres de forma harmônica e equilibrada para que ocorra, da melhor maneira possível, uma boa e necessária convivência, isso é, viver bem. O Bem Viver tem origem no conceito da cosmovisão das comunidades tradicionais latino-americanas que já em tempos remotos se organizavam a partir do coletivo. Esse modo de viver abarcava relações entre as pessoas e a natureza sem a presença de um modelo econômico, igual ao que temos na atualidade, como única forma possível de organização social.

O Bem Viver é uma filosofia de vida ligada diretamente ao saber viver em harmonia e equilíbrio com todos os ciclos da Mãe Terra e do cosmos. Sendo assim, a extinção de uma espécie pode significar a extinção do conjunto das espécies, já que todos os seres dos reinos animal, vegetal ou mesmo mineral vivem em uma rede de conexões, onde cada ser é uma parte importante para o todo.

Neste sentido, com o propósito de resgatar essa filosofia de vida vivida a milênios pelos indígenas, primeiros habitantes antes mesmo desta terra ser chamada Brasil, é que um grupo de homens e mulheres preocupados com o futuro das crianças, dos jovens e dos adultos, da comunidade (distrito de Ipiabas) vem promovendo e desenvolvendo atividades de educação e de cultura, no intuito de contribuir para a construção de uma nova sociedade embasada no Bem Viver e de acordo com a Rede Brasil do Pacto Global[1].

Educação e cultura são os dois eixos que essas pessoas vislumbram trabalhar por considerá-las fundamentais para a transformação da comunidade local em uma sociedade justa e solidária, possibilitando no futuro uma vida melhor a todos. Para tanto, julgou-se necessário fazer o resgate histórico do distrito e da Cidade (Barra do Piraí) que compõe a Região Sul Fluminense (Vale do café), pois, a história deve ser sempre contada e preservada, não necessariamente repetida. Tomou-se esta decisão devido ao fato que essa história tem início no final do século XVIII, quando nascemos das chamadas sesmarias pertencentes à Cidade de Valença, Estado do Rio de Janeiro.

Segundo os registros históricos e o livro: “Aldeamentos indígenas do Rio de Janeiro[2]”, no passado (Brasil Colônia, 1530 – 1822) toda a região do Sul Fluminense era habitada por alguns povos originários[3] (índios). A partir de 1800 é que a região começou a ser ocupado pelos colonizadores portugueses que criaram em 1849, um curato (zona eclesiástica da Igreja Católica) denominado Nossa Senhora da Piedade de Ipiabas. Em 1852 uma Lei Provincial transformou o local em uma Freguesia, com o mesmo nome tudo isso acontecia no Brasil Império (1822 – 1889). Durante todo o século XIX e início do XX a localidade pertenceu à Valença, sendo incorporada à Barra do Piraí em 1943.

Embora quase sempre ignorados, nos textos dos historiadores positivistas[4], enquanto personagens que de alguma forma influenciaram na construção histórica criando resistências aos poderes constituídos à época, os indígenas e os negros são parte dessa história, ambos escravizados nas fazendas de café. Uma das consequências dessa relação social é a formação de uma comunidade na sua maioria de mestiços e negros oriundos desse passado.

Nos dias atuais, Ipiabas é distrito da Cidade de Barra do Piraí, tem como principal fonte de economia pequenas atividades rurais e comerciais voltadas para atender os moradores residentes, os veranistas e os poucos turistas que ocupam as pousadas locais. O distrito de Ipiabas com área total de 44,365 km² e 750m de altitude está localizado em parte de Mata Atlântica, o que lhe favorece um clima temperado e agradável. É o quarto em extensão territorial, possui aproximadamente quatro mil habitantes, segundo censo de 2014. Está a 16,6 km do centro da Cidade de Barra do Piraí.

Ipiabas possui escolas públicas do Ensino Fundamental e Médio. Porém, é necessário que o poder público ofereça a essas crianças e jovens a oportunidade de aumentarem o capital cultural[5], por meio de aulas passeios e atividades lúdicas que desenvolvam a psicomotricidade, a leitura, a escrita, o raciocínio matemático e o gosto pela Ciência. É necessário assegurar a inclusão e a promoção de oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos, seguindo as orientações da Agenda 2030 do Pacto Global[6].

Com finalidade de alcançar a sonhada educação de qualidade é importante lembrar que devemos nos orientar sempre numa formação que proporcione o pensamento crítico do educando, para que tenham autonomia nas suas futuras intervenções na vida em sociedade e se tornem protagonistas de sua própria história, conforme reza a Constituição Federal no seu capítulo III da Educação, Seção I, Art. 205: "A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será  promovida e  incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao  pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho".

Preparar a pessoa para o exercício da cidadania e qualificá-la para o trabalho torna-se uma tarefa difícil quando falta orientações aos próprios educadores. Por isso, para consolidarmos a filosofia do Bem Viver e para alcançarmos os objetivos propostos é necessário trabalhar com dois eixos: o primeiro diz respeito a Educação Cidadã e Ambiental e o segundo diz respeito a Cultura e a Coletividade.

Acreditamos que uma sociedade alcance suas transformações sociais por meio da transformação do cidadão, provocada por uma educação transformadora capaz de impulsionar a reflexão e a ação sobre a realidade atual para obtenção e conquista da autonomia intelectual, conforme preconiza Paulo Freire, no sentido de promover uma sociedade fraterna e promotora de justiça social em busca de vida em abundância para todos (Bem Viver).

Ainda de acordo com Paulo Freire, entendemos a cultura como um importante complemento do processo da educação. Sendo assim, educação e cultura deveriam andar juntas contribuindo para reduzir esse modelo de sociedade com base no preconceito e na exclusão. Diferente disso, queremos favorecer as crianças e aos jovens oprimidos o aumento do capital cultural por meio de aulas passeios, contribuindo, desse modo, para que adquiram conhecimento e se constituam de forma imperceptível num círculo virtuoso que contribuirá para a formação de uma sociedade mais justa e fraterna.

Segundo Leonardo Boff[7], “...o universo não é feito da soma das coisas, mas sim dos conjuntos das relações, pois tudo está interligado”. Para Boff, “...o espírito de coletividade está presente intrinsecamente na essência dos seres humanos”. Nesta perspectiva uma forma de sociedade alternativa seria a do “Bem Viver”. A sociedade proposta em oposição à sociedade atual, que tem como base a competição, se organiza de maneira cooperativa e solidária, superando os conflitos de interesses em prol da convivência humana pacífica na construção do bem comum.

A Casa Bem Viver quer contribuir para construção dessa nova sociedade onde vigore a solidariedade e todos possam conviver conscientes do pertencimento a rede de relações, de reciprocidade e de coletividade para melhor viver e coevoluir. Apoiamo-nos, para dar sustentação aos nossos ideais, em documentos como a Agenda 2030, que trata do Desenvolvimento Sustentável e tem como plano de ação a erradicação da pobreza e a promoção de vida digna para todos[8].

Nossos ideais estão diretamente ligados a filosofia das comunidades tradicionais brasileiras que se organizam a partir do coletivo e, conforme já foi dito, o Bem Viver é o saber viver em harmonia e equilíbrio com todos os ciclos da Mãe Terra e do cosmos. Isto inclui, nós os seres humanos, que somos integrante de uma mesma rede de conexões, onde cada parte é importante para o todo. Assim como os indígenas e os negros do passado, somos homens e mulheres, na maioria mestiços, construindo uma nova história.



Barra do Piraí (Ipiabas), ,04 de outubro de 2021.


[1] Criada em 2003, a Rede Brasil responde à sede do Pacto Global, em Nova York, e preside o Conselho das Redes Locais na América Latina. Os projetos conduzidos no país são desenvolvidos dentro das seguintes Plataformas de Ação: Água e Saneamento, Alimentos e Agricultura, Energia e Clima, Direitos Humanos e Trabalho, Anticorrupção, Engajamento e Comunicação e ODS (esta última para engajar as empresas em relação à Agenda 2030).

[2] FREIRE, José Ribamar Bessa e MALHEIROS, Márcia Fernanda. Aldeamentos indígenas do Rio de Janeiro, 2ª ed. Rio de Janeiro: Eduerj, 2009.

[3] Durante o período colonial, a região do Vale do Paraíba, era uma imensa floresta habitada por índios das tribos Xumetos, Pitas e Araris, que foram chamados pelos portugueses de Coroados, devido à forma do seu cabelo. Esses indígenas foram aldeados na então Conservatória do Rio Bonito (distrito de Valença). Até hoje podemos observar nos nomes de alguns bairros, nomes de algumas ruas a herança deixada pelos por esses indígenas.

[4] Os historiadores positivistas lançam mão do rigor metodológico advinda da descrição pormenorizada dos fatos contidos nos documentos oficiais escritos, obedecendo a linearidade cronológica dos acontecimentos, tendo em vista, principalmente os eventos de ordem política e personalidades importantes.

[5] BOURDIEU, Pierre. Capital Cultural, Escuela y Espacio Social. México: Siglo Veinteuno, 1997.

[6] A Agenda 2030 é um plano de ação para as pessoas, o planeta e a prosperidade, que busca fortalecer a paz universal. São objetivos e metas claras, para que todos os países adotem de acordo com suas próprias prioridades e atuem no espírito de uma parceria global que orienta as escolhas necessárias para melhorar a vida das pessoas, agora e no futuro.

[7] Espiritualidade, Saúde e Ambiente, Palestra proferida por Leonardo Boff, no 8º Simpósio Interdisciplinar em Saúde e Ambiente (Sisa). Evento realizado por meio do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde (CCBS). No Teatro Univates.

[8] A Agenda 2030 indica 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, os ODS, e 169 metas, para erradicar a pobreza e promover vida digna para todos, dentro dos limites do planeta.

[i] Professor da SEEDUC-RJ, Especialista em Educação e autor dos livros: Sobre o Trabalho que Falo, Sobre o Rio que Falo, Sobre Nós que Falo e Nativos de Pindorama: Conhecer para respeitar é preciso.

Bíblia: a Escritura Sagrada Inspirada por Deus. João Crispim Victorio – Professor, Especialista em Educação. “Toda Bíblia é comunicação de ...