quarta-feira, 10 de abril de 2019

Direitos Humanos, Direitos Constitucionais e Questões Indígenas no Brasil
João Crispim Victorio[1]

Na história da humanidade a primeira declaração dos direitos humanos é atribuída a Ciro, rei da antiga Pérsia. Ciro conquistou a cidade da Babilônia (539 a.C.), libertou os escravos e declarou por meio de um documento que todas as pessoas teriam direito a liberdade religiosa, estabelecendo igualdade entre o povo. Essa ação do rei Ciro, espalhou-se ao longo do tempo, com isso, foram surgindo outras iniciativas que afirmava os direitos individuais da pessoa, em forma de documentos.
Durante os séculos XVII e XVIII, com o protagonismo do Iluminismo, movimento cultural que se desenvolveu na Europa, ocorreram grandes eventos que culminaram na Declaração dos Direitos Humanos que conhecemos hoje. Em 1628, surgiu a Petição de Direito, documento elaborado pelo parlamento Inglês e enviado a Carlos I como uma declaração de liberdades civis. Em 1776, temos a Declaração dos Direitos Individuais consolidando a independência do Estados Unidos e em 1789, com a Revolução Francesa é elaborado a histórica Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Esses documentos são os precursores da Declaração Universal do Direitos Humanos de 1948.
A Declaração de 1948[2], nasce da necessidade de se evitar que violações aos direitos individuais, conforme as cometidas por governantes fascistas durante a Segunda Guerra Mundial, não aconteçam novamente. O documento assinado por 192 países membros, foi elaborado por uma comissão da Organização das Nações Unidas – ONU, organização criada logo após o fim dos conflitos com o objetivo de preservar a paz em todas as nações. Esse documento é usado, mesmo sem força de lei, como base para elaboração de constituições e tratados internacionais.
Como vimos a Declaração Universal dos Direitos Humanos consiste em um documento de garantias aos direitos universais a todo e qualquer cidadão, independente de classe social, etnia, gênero, nacionalidade ou posicionamento político. Tais direitos como o de não ser escravizado, de ser tratado com igualdade perante as leis, de ter liberdade a expressão religiosa, ao pensamento e participação política. Direito ao lazer, a educação, a cultura e o trabalho livre e remunerado, na verdade, foram construídos ao longo da nossa história. Então, o que temos é o resultado de muitas lutas atuais e do passado para que questões específicas, importantes e necessárias em cada período histórico, chegassem até nós hoje.
Segundo a ONU, os direitos humanos são “garantias jurídicas universais que protegem indivíduos e grupos contra ações ou omissões dos governos que atentem contra a dignidade humana”. Entre outros, são exemplos de direitos humanos o direito à vida, à integridade física, à dignidade. Mas será mesmo que no Brasil somos cidadãos de direitos? Será que nosso país, na prática, respeita nossos direitos universais, independente de classe social, etnia, gênero ou posicionamento político? Para responder a estas questões vamos analisar na história do Brasil a trajetória da “evolução” dos Direitos Humanos.
Tomarei por base, aqui, as garantias dos direitos políticos e civis em algumas das Constituições brasileiras. Por ser esta a Lei maior do país e, na maioria das vezes, fundamentada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, garantindo especificamente que os direitos sejam fundamentais ao cidadão. A Constituição Imperial de 1824, segundo, Isabela Souza[3]: “ainda que o poder estivesse concentrado nas mãos do imperador. O objetivo era garantir principalmente a liberdade, a segurança individual e a propriedade.” Claro que para os afortunados da época. Já os escravos, conforme Isabela Souza: “eram tratados como produto e propriedade do senhor. As violências sofridas por estas pessoas, com a perda de liberdade, desrespeito à sua integridade física e a perda da própria vida foram nitidamente um desrespeito aos direitos humanos.” Para Cunha, (2012, p. 82 e 83). Muitos desses escravos eram índios[4].
Na Constituição de 1891, já no período republicano, segundo, Isabela Souza: “foi garantido o sufrágio direto para eleição de deputados, senadores, presidente e vice-presidente. Mas o sufrágio não era universal, já que impedia o voto de mulheres, mendigos e analfabetos. Esta constituição defendia os princípios de liberdade, igualdade e justiça.” Se deixaram de fora as mulheres e os analfabetos podemos, então, concluir que entre estes estavam os índios e os negros. Ainda Isabela de Souza: “Entre algumas medidas dessa Constituição estão o direito à plena liberdade religiosa, à defesa ampla aos acusados, direito à livre associação e reunião, sem contar a criação do habeas corpus, como forma de remediar casos de violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder.”
A Constituição de 1934, que só vigorou por três anos, nasceu como consequência da revolução constitucionalista de 1932. Segundo,Isabela Souza, nesta Constituição “foram estabelecidos algumas concepções de segurança ao indivíduo, como proteção ao direito adquirido, proibição da prisão por dívidas, criação da assistência judiciária aos necessitados (que até hoje acontece em muitos estados brasileiros) e a obrigatoriedade de comunicação imediata ao juiz competente sobre qualquer prisão ou detenção.” Esta Constituição, também, instituiu diversas garantias ao trabalhador e ganhos em direitos sociais, melhorando e diminuindo consideravelmente o fosso entre o trabalhador e o sistema capitalista.
Mas como tudo que é bom dura pouco, em 1937, tem início o Estado Novo, período que vai até 1945. Esse período foi marcado pelo abandono dos direitos humanos. Ocorre o fechamento do Congresso e a proibição de funcionamento de quase todos os partidos políticos. No Estado Novo passa a vigorar a Constituição de 1937, que segundo Isabela Souza:

Tinha influências fascistas e autoritárias. Na época, foi criado um Tribunal de Segurança Nacional, com competência para julgar qualquer crime contra a segurança do Estado. O governo assumiu amplo domínio sobre o Poder Judiciário e foram nomeados diversos interventores nos estados federativos.
Em meio a este cenário problemático, os direitos fundamentais foram enfraquecidos e esquecidos, sobretudo por causa da Polícia Especial e do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que censurava as comunicações orais e escritas, inclusive em correspondências.

 Este cenário só muda a partir de 1946, quando chega ao fim o Estado Novo. A Constituição de 1946, restaura os direitos e as garantias, além de ampliá-los. Só que essas melhorias não duraram muito tempo, pois, o desrespeito aos direitos fundamentais vai reaparecer em 1964, com a deflagração de um golpe militar, que tem início em abril de 1964 e vai até 1985. Esse período é marcado por um sistema de centralismo e autoritarismo, que resultou em sérias consequências aos direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros. Houve fechamento do Congresso Nacional, cassação dos direitos políticos dos opositores, extinção de partidos políticos e a criação do Serviço Nacional de Informações (SNI), a polícia política.
Somente com a Constituição de 1988, considerada como de grande avanço jurídico e, também, social, já que garante os direitos fundamentais a todos os cidadãos, incluindo os originários da terra[5], como podemos constatar logo no primeiro artigo que estabelece os princípios da cidadania, da dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho. Assim, como no artigo 5º onde é estabelecido o direito à vida, à privacidade, à igualdade, à liberdade, entre outros os mais importantes direitos fundamentais individuais e coletivos. Porém, apesar dos direitos fundamentais serem resguardados pela atual Constituição, há décadas após a sua promulgação, ainda existem muitas dificuldades em tirar alguns desses princípios do papel. Principalmente os que estão ligados as questões das terras indígenas.
O Brasil votou a favor da Declaração da ONU sobre os Direitos do Povos Indígenas. No plano nacional, até o momento, os instrumentos internacionais têm sido aplicados para proteger os direitos dos povos indígenas, suas terras e recursos naturais nelas encontrados, tal como dispõe o artigo 231 da nossa Constituição Federal[6]. No entanto, na prática, os direitos humanos dos povos indígenas ainda enfrentam inúmeros problemas de ordem política, social e econômica. Além dos problemas relacionados ao preconceito. Nos últimos anos as comunidades indígenas, por meio de suas organizações ou organizações parceiras, tem acessado o sistema internacional de direitos humanos para fazer valer seus direitos fundamentais. Pois acreditam ser o Brasil o seu Estado e por essa razão buscam igualdade de tratamento e de direitos enquanto cidadãos brasileiros.
Sabemos, e é notório, que o Brasil vive em um estado permanente de violação dos direitos humanos. O ex-presidente da República[7] que governou o país nos últimos dois anos (2016 – 2018) tentou jogar para o legislativo, com o objetivo de facilitar a invasão das terras indígenas pelos grandes e médios fazendeiros, os donos do agronegócio, a responsabilidade, até então sua, de realizar as demarcações das terras indígenas[8]. Já o atual presidente da República[9], em um de seus primeiros atos destinou ao Ministério da Agricultura uma das principais atividades da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, a função de realizar as demarcações das terras indígenas. Com esta ação as demarcações passam ser de responsabilidade dos maiores interessados nas terras indígenas, os ruralistas[10].
Parte importante da sociedade, a grande maioria, aquela formada por índios[11], negros, pobres e trabalhadores, ou seja, a massa oprimida e excluída, principal vítima das violações dos direitos humanos, parece que aos poucos está despertando e querendo sair do comodismo do berço esplêndido. Como podemos verificar com as mobilizações que vêm se multiplicando nas periferias, nas favelas e nas ruas dos grandes centros urbanos, para reivindicar os direitos negligenciados pelo poder público.
O Brasil ao ratificar tratados multilaterais de direitos humanos, reconhece seus princípios humanitários e se compromete a implementar e protege-lo. Nesse sentido, fica assegurado a todos os brasileiros, homens, mulheres, jovens e crianças, independentemente da cor da pele ou da etnia, o direito à vida, à segurança social, à educação e a saúde. Então como podem explicar que crianças, de modo geral, vivam e cresçam sem acesso à educação, à saúde, à cultura e ao lazer? Pior, que muitas delas são responsáveis pelo sustento da família, trabalhando escravizadas nos subempregos ao invés de estarem na escola.
Acredito só ser possível construir um país digno, ou seja, com todos os direitos fundamentais dos cidadãos respeitados, quando alcançarmos o Bem-Viver, modo de vida da maioria dos povos originários. Isso significa viver em comunhão com o outro e com a mãe Terra. Para tanto, precisamos aprender a esperançar e a perseverar como nossos irmãos Guarani. Encarar de frente os problemas sociais, políticos e econômicos e ir em busca da “Terra sem Males”. Sendo assim, conforme, José Ricardo Cunha e Nadine Borges[12], devemos lembrar que: “a Declaração dos Direitos Humanos de 1948 é um patrimônio de toda a humanidade e de cada indivíduo. Os direitos ali declarados são direitos de cada um e de todos; das gerações presentes e das gerações futuras que não obstante ainda inexistentes reclamam de nós o comportamento ético necessário à preservação da vida no planeta.” Nesse sentido, não se pode conferir um só direito sem o outro e somente com a garantia de um direito é que se faz avançar os demais. Já a privação de um desses direitos viola todo o conjunto dos direitos humanos.


Referências:

Disponível em <https://pib.socioambiental.org/pt/Povos ind%C3%ADgenas e os direitos humanos> acesso em 30/03/2019.
Disponível em <https://anistia.org.br/o brasil e ameaca aos direitos dos povos indigenas/> acesso em 30/03/2019.
Disponível em <https://gife.org.br/brasil caminha na contramao dos compromissos assumidos na declaracao da onu sobre direitos indigenas/> acesso em 30/03/2019.

[1] Professor, Especialista em Educação e Poeta. Autor do livro: Nativos de Pindorama: conhecer para respeitar é preciso. Editora Autografia, 1ª edição, Rio de Janeiro, 2018.

[2] Direitos humanos são os direitos fundamentais inerentes a todos os seres humanos independentemente de sua nacionalidade, sexo, origem étnica ou nacional, cor, religião, ou qualquer outro status.

As definições dos direitos humanos estão sempre em constante construção, por isso são chamados de direitos históricos, uma vez que correspondem a valores que vão se tornando fundamentais ao longo do tempo. Normalmente, seu reconhecimento é fruto de muita luta e reivindicação de setores que se organizam para obter esta conquista.

[3] Disponível em <https://www.politize.com.br/direitos humanos o que sao/> acesso em 30/03/20019.

[4] CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: história, direitos e Cidadania. Coleção Agenda Brasileira, 1ª edição - São Paulo, 2012.

[5] Na Constituição de 1988, os direitos dos índios estão expressos em capítulo específico (Título VIII, Da Ordem Social, Capítulo VIII, Dos Índios) com preceitos que asseguram o respeito à organização social, aos costumes, às línguas, crenças e tradições.

[6] Artigo 231: "São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens."

[7] Presidente Michel Temer.

[8] Terra Indígena (TI) é uma porção do território nacional, de propriedade da União, habitada por um ou mais povos indígenas, por ele(s) utilizada para suas atividades produtivas, imprescindível à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e necessária à sua reprodução física e cultural, ...

[9] Presidente Jair Bolsonaro.

[10]Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/01/bolsonaro retira da funai a demarcação de terras indigenas.shtml> acesso em 30/03/20019.

[11]O poder econômico tem ameaçado os direitos de povos indígenas no Brasil. ... Os indígenas sofrem discriminação, privações e ameaças, seu direito constitucional as suas terras ancestrais são violadas, e o governo tem falhado em garantir sua segurança e direitos.

[12] CUNHA, José Ricardo (Org). Direitos Humanos e Poder Judiciário no Brasil. FGV, 2ª edição, Rio de Janeiro, 2010.

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