A
Ciência Indígena[i]
Uma reflexão para o momento atual de pandemia, de negacionismo e de desgoverno por que passa o povo brasileiro.
19 de abril, Dia dos povos originários da Terra.
Viva os Índios do Brasil e de todo o Mundo!!!
Os povos indígenas brasileiros possuem uma longa história que se
inicia há milhares de anos antes da chegada dos colonizadores portugueses. Isso
significa que esses povos têm conhecimentos acumulados que lhes possibilitaram,
como qualquer outra civilização humana, a se desenvolverem de forma equivalente. Os saberes indígenas foram gerados a
partir de milhares de anos de observações e experiências empíricas
compartilhadas no intuito de garantir o modo específico de vida. É necessário
fazer essa constatação para desconstruir a ideia preconceituosa de que os
índios precisam dos brancos para viver, pois seriam incapazes de assegurar a
própria sobrevivência.
Os conhecimentos científicos e tecnológicos da sociedade moderna
são importantes e devem ser também utilizados para aperfeiçoar e melhorar as
condições de vida das muitas comunidades indígenas, o que não significa dizer
que sem tais conhecimentos os índios não conseguiriam sobreviver. Os saberes indígenas,
diferentemente dos nossos, estão ligados à percepção e à compreensão da
natureza e é organizado a partir da cosmologia ancestral que garante e sustenta
a possibilidade de vida. Nesse sentido, os saberes se manifestam em todos os
momentos da vida cotidiana do povo indígena.
Para nós, os não índios, ciência[1]
é uma palavra que deriva do latim “scientia” e significa conhecimento ou saber. Atualmente se designa por ciência todo o conhecimento que
abarca teorias e leis gerais obtidas e testadas por meio do método científico.
A ciência, na verdade, comporta um conjunto de saberes com teorias elaboradas
nas suas próprias metodologias. Neste conjunto de saberes, temos as Ciências Humanas e as Ciências da Natureza que, obrigatoriamente,
descrevem, ordenam e comparam os fenômenos naturais determinando as relações
existentes entre eles, formulando leis e regras. Podemos distingui-las como
Ciências Exatas: física e química e Ciências Descritivas: biologia, geologia,
medicina, entre outras.
Para os indígenas, o acesso ao saber científico está ao alcance de
todos, são conhecimentos públicos, embora sejam respeitadas as competências e
as aptidões individuais como as de domínio do pajé[2]. A
metodologia da ciência indígena é a visão da totalidade do mundo e está baseada
nas dimensões do espírito e do corpo. A natureza é a fonte de todo o conhecimento
e não o homem, por isso, o indivíduo deve buscar compreender e conhecer ao
máximo o seu funcionamento para desvendá-la, compreendê-la, aceitá-la e
contemplá-la.
O povo brasileiro, que aos poucos foi se formando, possui influências
das culturas e dos saberes dos povos indígenas nos costumes, na alimentação, no
vocabulário, nas artes e nas ciências. Mas, infelizmente, apesar da consciência
indígena e das leis favoráveis à proteção dos conhecimentos tradicionais,
muitos saberes e costumes estão desaparecendo diante da pressão da cultura
dominante e da globalização. Entre as ciências, destacamos aqui apenas as da
natureza por meio das medicinais e das astrológicas, como exemplos da
importante contribuição indígena no desenvolvimento científico brasileiro.
Nas ciências medicinais, se apresenta a fitoterapia, palavra que
derivada do grego e significa cura pelas plantas, ou seja, é a ciência que
utiliza as plantas para o tratamento e prevenção de várias doenças. A
fitoterapia é uma ciência que existe há muitos séculos. Os indígenas, muito antes
da chegada dos portugueses, que encontraram aqui exuberante flora e fauna, já a
utilizava, por meio das raízes, flores, folhas, cascas e sementes, na prevenção
e na cura de todos os seus males.
Em nosso tempo, os cientistas lutam arduamente na busca da cura de
algumas doenças, muitas delas consequência do ritmo de vida da sociedade
moderna, mas o fazem se apropriando, muita das vezes, dos saberes fitoterápicos
acumulados indígenas e da biodiversidade de nossas florestas, sem que isso
signifique algum tipo de benefício para a população de modo geral. Ao
contrário, sabemos que os beneficiados nessa história são os grandes
laboratórios privados e a indústria farmacêutica.
Na Astronomia, uma das ciências mais antiga do mundo, a cultura
indígena se faz presente desde os seus primórdios, época que a humanidade
buscava no céu os ciclos que pudessem regular suas atividades ligadas à
sobrevivência. Eram os sinais do céu que conduziam o preparo para o tempo de
trabalhar a terra, semear, colher, pescar, caçar e coletar. Os indígenas até
hoje regulam os ciclos de trabalho pelas constelações, que normalmente
representam animais típicos da região onde vivem.
Os ciclos são regulados, em sua essência, pelo movimento da Terra ao
redor do Sol. Esse movimento produz, entre outras coisas, a sucessão das
estações do ano e a consequente variação da radiação solar recebida em uma dada
região. As alterações nos aspectos do céu que observamos ao longo do ano,
refletem as mudanças de posição da Terra na sua órbita ao redor do Sol e servem
de indicadores práticos para as atividades de sobrevivência de muitas culturas.
Quanto aos estudos da Astronomia, para nós, estão quase sempre
atrelados ao legado dos estudiosos egípcios ou gregos. No entanto, os indígenas
possuem sua Astronomia, com as suas constelações que, como era de se esperar, nada
têm em comum com as constelações imaginadas por esses estudiosos na
antiguidade.
Na Astronomia indígena, as estrelas e os humanos vivem intimamente
conectados. Nessa profunda conexão o céu, seus astros e terra são um só. Para
os ticunas, por exemplo, a Lua e o Sol são seres vivos e interferem no destino
humano. Esses mitos que integram a cosmovisão explicam o Universo e passam de
geração a geração por relatos extraordinários que garantem as diferenças e a exclusividade
dos povos indígenas.
Mas infelizmente, hoje, há mais de 500 anos da chegada dos
portugueses, a cultura indígena vem sendo subvalorizada e deteriorada junto com
as florestas e os rios, devido à invasão de suas terras e deturpação dos seus
costumes. Deixam de lado, em nome da “moderna ciência”, muito do que já se conhecia
do céu e seus sinais, da flora e da fauna da nossa inigualável biodiversidade,
há muito conhecidas por nossos primeiros habitantes. Porém, toda essa riqueza é
quase que totalmente desconhecida por grande parte do povo brasileiro, na
grandeza dos seus benefícios. Mas não podemos negar que a rica cultura dos
povos indígenas nos beneficia com seu legado, que é parte integrante de nossa
história.
A Ciência Indígena vem dando sua contribuição na universalização e sistematização do saber com suas tradições milenares. Seus conhecimentos são essencialmente empíricos, por isso, livres de métodos e dogmas fechados e absolutos e se garantem na efetividade prática e nos resultados concretos que acontecem no seu cotidiano. Mas é preciso garantir os territórios tradicionais como condição de possibilidade, para que os povos tenham vida sociocultural plena e possam contribuir com seus conhecimentos ainda mais para o desenvolvimento de todo o povo brasileiro.
[1] De acordo com a UNESCO, “a ciência é o conjunto de conhecimentos organizados sobre os mecanismos de causalidade dos fatos observáveis, obtidos através do estudo objetivo dos fenômenos empíricos”, enquanto “a tecnologia é o conjunto de conhecimentos científicos ou empíricos diretamente aplicáveis à produção ou melhoria de bens ou serviços” (Reis, Dálcio Roberto, “Ciência e Tecnologia” in www.xadrezeduca.com.br/site/h4/).
[2] O pajé é quem realiza, entre outras coisas, a pajelança, ritual de cura no qual o pajé evoca espíritos de ancestrais ou de animais da floresta para pedir orientação no processo de cura do paciente. Algumas ervas e plantas também podem ser usadas durante o ritual.
[i] Texto extraído do Livro:
VICTORIO, João Crispim. Nativos de Pindorama: Conhecer
para respeitar é preciso. Rio de Janeiro, RJ Editora
Autografia, 2018.