Um país que não tem dignidade não sente indignação
por Aldo Fornazieri
O presidente da República foi flagrado cometendo uma série de crimes e
as provas foram transmitidas para
todo o país. Com exceção de um protesto aqui, outro ali, a vida seguiu em sua
trágica normalidade. Em muitos outros países o presidente teria que renunciar
imediatamente e, quiçá, estaria preso. Se resistisse, os palácios estariam
cercados por milhares de pessoas e milhões se colocariam nas ruas até a saída
de tal criminoso, pois as instituições políticas são sagradas, por expressarem
a dignidade e a moralidade nacional.
Aqui não. No Brasil tudo é possível. Grupos criminosos podem usar das
instituições do poder ao seu bel prazer. Afinal de contas, no Brasil nunca
tivemos república. Até mesmo a oposição, que ontem foi apeada do governo, dá de
ombros e muitos chegam a suspeitar que a denúncia contra Temer é um golpe
dentro do golpe. Que existem vários interesses em jogo na denúncia, qualquer
pessoa razoavelmente informada sabe. Mas daí adotar posturas passivas em face
da existência de uma quadrilha no comando do país significa pouco se importar
com os destinos do Brasil e de seu povo, priorizando mais o cálculo político de
partidos e grupos particulares.
O Brasil tem uma unidade política e territorial, mas não tem alma, não
tem caráter, não tem dignidade e não tem um povo. Somos uma soma de partes
desconexas. A unidade política e territorial foi alcançada às custas da
violência dos poderosos, dos colonizadores, dos bandeirantes, dos escravocratas
do Império, dos coronéis da Primeira República, dos industriais que amalgamaram
as paredes de suas empresas com o suor e o sangue dos trabalhadores, com a
miséria e a degradação servil dos lavradores pobres.
Índios foram
massacrados; escravos foram mortos e açoitados; a dissidência foi dizimada; as
lutas sociais foram tratadas com baionetas, cassetetes e balas. A nossa alma, a
alma brasileira, foi ganhando duas texturas: submissão e indiferença. Não temos
valores, não temos vínculos societários, não temos costumes que amalgamam o
nosso caráter e somos o povo, dentre todas as Américas, que tem o menor índice
de confiabilidade interpessoal, como mostram várias pesquisas.
Na trágica normalidade da nossa história não nos revoltamos contra o
nosso dominador colonial. Ele nos concedeu a Independência como obra de sua
graça. Não fizemos uma guerra civil contra os escravocratas e não fizemos uma
revolução republicana. A dor e os cadáveres foram se amontoando ao longo dos
tempos e o verde de nossas florestas foi se tingindo com sangue dos mais
fracos, dos deserdados. Hoje mesmo, não nos indignamos com as 60 mil mortes
violentas anuais ou com as 50 mil vítimas fatais no trânsito e os mais de 200
mil feridos graves. Não nos importamos com as mortes dos jovens pobres e negros
das periferias e com a assustadora violência contra as mulheres. Tudo é normal,
tragicamente normal.
Quando nós, os debaixo, chegamos ao poder, sentamos à mesa dos nossos
inimigos, brindamos, comemoramos e libamos com eles e, no nosso deslumbramento,
acreditamos que estamos definitivamente aceitos na Casa Grande dos palácios. Só
nos damos conta do nosso vergonhoso engano no dia em que os nossos inimigos nos
apunhalam pelas constas e nos jogam dos palácios.
Nunca fomos uma democracia racial e, no fundo, nunca fomos democracia
nenhuma, pois sempre nos faltou o critério irredutível da igualdade e da
sociedade justa para que pudéssemos ostentar o título de democracia. Nos
contentamos com os surtos de crescimento econômico e com as migalhas das parcas
reduções das desigualdades e estufamos o peito para dizer que alcançamos a
redenção ou que estamos no caminho dela. No governo, entregamos bilhões de
reais aos campeões nacionais sem perceber que são velhacos, que embolsam o
dinheiro e que são os primeiros a dar as costas ao Brasil e ao seu povo.
No Brasil, a mobilidade social é exígua, as estratificações sociais são
abissais e não somos capazes de transformar essas diferenças em lutas radicais,
em insurreições, em revoltas. Preferimos sentar à mesa dos nossos inimigos e
negociar com eles, de forma subalterna. Aceitamos os pactos dos privilégios dos
de cima e, em nome da tese imoral de que os fins justificam os meios, nos
corrompemos como todos e aceitamos o assalto sistemático do capital aos
recursos públicos, aos orçamentos, aos fundos públicos, aos recursos
subsidiados e, ainda, aliviamos os ricos e penalizamos os pobres em termos
tributários.
Quando percebemos os nossos enganos, nos indignamos mais com palavras
jogadas ao vento do que com atitudes e lutas. Boa parte das nossas lutas não
passam de piqueniques cívicos nas avenidas das grandes cidades. E, em nome de
tudo isto, das auto-justificativas para os nossos enganos, sentimos um alívio
na consciência, rejeitamos os sentimentos de culpa, mas não somos capazes de
perceber que não temos alma, não temos caráter, não temos moral e não temos
coragem.
Da mesma forma que aceitamos as chacinas, os massacres nos presídios, a
violência policial nos morros e nas favelas, aceitamos passivamente a
destruição da educação, da saúde, da ciência e da pesquisa. Aceitamos que o
povo seja uma massa ignara e sem cultura, sem civilidade e sem civilização.
Continuamos sendo um povo abastardado, somos filhos de negras e índias
engravidadas pela violência dos invasores, das elites, do capital, das classes
políticas que fracassaram em conduzir este país a um patamar de dignidade para
seu povo.
Aceitamos a destruição das nossas florestas e da nossa biodiversidade, o
envenenamento das nossas águas e das nossas terras porque temos a mesma alma
dominada pela cobiça de nos sentirmos bem quando estamos sentados à mesa dos
senhores e porque queremos alcançar o fruto sem plantar a árvore. Se algum
lampejo de consciência, de alma ou de caráter nacional existe, isto é coisa
restrita à vida intelectual, não do povo. O povo não tem nenhuma referência
significativa em nossa história, em algum herói brasileiro, em algum
pai-fundador, em alguma proclamação de independência ou república, em algum
texto constitucional em algum líder exemplar.
Somos governados pela submissão e pela indiferença. Não somos capazes de
olhar à nossa volta e de perceber as nossas tragédias. Nos condoemos com as
tragédias do além-mar, mas não com as nossas. Não temos a dignidade dos
sentimentos humanos da solidariedade, da piedade, da compaixão. Não somos
capazes de nos indignar e não seremos capazes de gerar revoltas, insurreições,
mesmo que pacíficas. Mesmo que pacíficas, mas com força suficiente para mudar
os rumos do nosso país. Se não nos indignarmos e não gerarmos atitudes fortes,
não teremos uma comunidade de destino, não teremos uma alma com um povo, não
geraremos um futuro digno e a história nos verá como gerações de incapazes, de
indiferentes e de pessoas que não se preocuparam em imprimir um conteúdo
significativo na sua passagem pela vida na Terra.
Aldo Fornazieri -
Professor da Escola de Sociologia e Política