terça-feira, 29 de março de 2016

A Democracia, os Políticos e os Idiotas[i].
João Crispim Victorio[ii]

“Vendiam suas propriedades e seus bens e repartiam o dinheiro entre todos, conforme a necessidade de cada um” (At. 2,45).

“Um homem chamado Ananias fez um acordo com sua esposa Safira: vendeu uma propriedade que possuía, reteve uma parte do dinheiro para si e entregou a outra parte, colocando-a aos pés dos apóstolos” (At. 5, 1-2).

“Então o sumo sacerdote, com todo o seu partido – isto é, o partido dos saduceus, - ficaram cheios de raiva, e mandaram prender os apóstolos e jogá-los na cadeia pública” (At. 5, 17-18).


          Provavelmente o livro dos Atos dos Apóstolos foi escrito entre os anos 80 e 90 d.C. Este livro relata as atividades e as várias perseguições sofridas pelos cristãos originários que começa sob o domínio de Nero, em 67 d.C, logo depois por Domiciano, em 81 d.C. Estas perseguições se sucederam por mais de um século quando Diocleciano ascendeu ao trono imperial em 284 d.C e tem início a décima perseguição aos cristãos sob seu domínio, em 303 d.C. É durante essa conjuntura conturbada que o mundo sofre uma primeira grande divisão, ou seja, a partir daí temos o Ocidente e Oriente. A palavra oriente vem do latim oriens, ‘o sol nascente’ e a palavra ocidente vem do latim occidens, ‘o sol poente’. Ou seja, são pontos de orientação do Sol. O lado ocidental é a região oeste do polo da Terra, onde o Sol se põe ao fim do dia e o lado oriental, é a região leste, lado do horizonte onde o Sol aparece pela manhã. Essa divisão ocorreu devido aos conflitos vividos pelo Império Romano. Diocleciano, para evitar o agravamento da crise que vinha passando, resolveu reorganizar a estrutura de poder dividindo o império em dois: o do Oriente, com capital em Constantinopla, posterior Império Bizantino
[1], e o do Ocidente, com capital em Roma.
          Podemos, então, dizer que o Mundo Antigo, dominado pelo Império Romano, mesmo sofrendo influências da Grécia com sua forma de organização social democrática, era extremamente autoritário. Mas também vemos, por meio dos relatos dos Atos dos Apóstolos, que isso não impedia que os judeus e, particularmente os judeus adeptos do cristianismo, se organizassem com objetivo de tornar a vida um pouco melhor. Foi por acreditarem na possibilidade da transformação social, uma nova sociedade justa e fraterna, construída por todos e para todos sob os princípios cristãos, que muitos foram perseguidos e mortos.
          Temos aqui algumas questões que são intrigantes e incompreensíveis, até mesmo para nós nos dias de hoje. Notem que desde a Antiguidade o ser humano vem buscando meios de sobrevivência onde pese uma organização social que seja satisfatória, a princípio deveria ser o melhor para todos. No entanto, o que pode ser observado é que nem todos endentem isso e por isso não se envolvem ou se comprometem com as lutas sociais, são mesquinhos, individualistas e egoístas, a esses chamamos de despolitizados ou de “analfabetos políticos”, segundo Bertolt Brecht[2]. As consequências é o fortalecimento do poder hegemônico dos mais abastados, dos donos do capital. Por outro lado temos os politizados, aqueles que entregam a própria vida em prol dos outros, do seu próximo, por acreditar na força que provem das ações coletivas e democráticas, capazes de transformar para melhor a sociedade.
          Mas afinal o que é democracia? Segundo sua origem na Grécia Antiga, (‘demokratía’; ‘demos’: povo + ‘kratos’: poder): significa o poder exercido pelo povo. A democracia surgiu na Grécia num momento de crises e conflitos, que não foi de tudo ruim, já que, o momento foi marcado pelo surgimento das Cidades - Estado[3], modelo que previa uma efetiva participação política dos cidadãos, a chamada democracia direta. O governo era realmente exercido pelo povo, que fazia reuniões em praça pública para tratar dos assuntos e problemas, as decisões eram tomadas em assembleias públicas. O crescimento populacional dificulta as reuniões em praça pública e então surge uma nova forma de se organizar, a democracia representativa, onde o povo se reúne e, por meio do voto, escolhe os representantes para tomar decisões em seu nome. Este, inclusive, é o processo mais comum de tomada de decisão nos governos democráticos.
          Sendo assim, podemos concluir que todos os cidadãos eram políticos na sociedade grega? Claro que não. Primeiro, na Grécia Antiga não eram considerados cidadãos os escravos, as mulheres e os estrangeiros, então, se são excluídos como cidadãos, não participam da vida política. Segundo, vamos saber qual o conceito de político para os gregos: (‘poli’:pólis/cidade + ‘tikós’: bem comum): aquele que pensa no bem comum, que pensa nos outros, na Pólis, no público. Ou seja, é aquele que se interessa e se preocupa não só com seus interesses particulares, mas com os interesses de todos. Sabemos que todo homem é um ser social, pois vive e se realiza em sociedade. Então parece óbvio que todos deveriam se interessar pelos assuntos do Estado, já que são assuntos de todos os cidadãos. Infelizmente nem todos endentem a importância disso e se omitem, se acovardam ou mesmo ignoram sua participação, abrindo mão dessa maneira, de um direito fundamental a ser exercido, deixando que outros decidam por ele.
          Naquela época os gregos criaram os termos “politikós” e “idiótikos”. O primeiro faz referência aos cidadãos que se interessavam pelos assuntos da Pólis. O segundo faz referência aos cidadãos que não se preocupavam com os assuntos da Pólis. Mais adiante, seriam chamados de “idiotes” ou “não consciente das artes”, séculos mais tarde na nossa palavra atual: idiotas. A palavra idiota (‘idios’: pessoal, privado): significa aquele que se preocupa somente com si mesmo, com seus interesses privados, sem prestar atenção aos assuntos públicos, de todos. Então, podemos concluir que idiotas e políticos são opostos por existência desde a Grécia Antiga.
          No Brasil, a democracia vem sendo construída a passos lentos. Nosso sistema democrático é o representativo e tem caráter efetivo a partir do final da ditadura civil-militar, em meados dos anos 80. Sendo assim, é um sistema relativamente novo, mas já carregado de muitos conflitos entre os movimentos de esquerda, que queriam a abertura política, anistia para os exilados e eleições diretas para presidente da República, e os de direita formados ainda com base nas velhas oligarquias agrárias, por políticos profissionais de carreira, médios e grandes empresários, banqueiros e militares, que queriam a qualquer preço assumir o poder político do país. Esses movimentos vão, um pouco depois, dá origem aos partidos políticos de esquerda, de centro e de direita.
          Os partidos que compõe o bloco de esquerda e os que compõem o bloco de direita são fortemente caracterizados e os políticos que formam o último, diferentemente dos políticos que atuavam no sistema grego, preocupando-se com a Pólis, esses não trabalham na expectativa da construção de um Estado para todos. Trabalham, sim, para manter seus feudos ou currais eleitorais, para seus próprios interesses privados e pensam somente em si mesmos. Não respeitam os poderes da República, pois acreditam poder fazer o que quiserem, tornando nosso país numa terra onde se faz leis. Mas, no entanto, as mesmas não são cumpridas por uns poucos que se acham acima delas. Isso nos leva a acreditar que vivemos uma cidadania teórica, sem muito reflexos práticos na nossa vida de cidadãos.
          Mesmo nossa democracia sendo jovem, temos conquistas importantes, mas temos muito que amadurecer, particularmente em se tratando de nossa cultura política. Porém, o nosso problema não é só os políticos mal intencionados. Temos uma população muito grande de pessoas que se preocupam somente com si mesmas, com seus interesses privados, sem prestar atenção aos assuntos públicos, de todos, ou seja, temos no Brasil muitos idiotas, no sentido original da palavra. Desse jeito, o Estado não vai funcionar como deveria, não vai oferecer serviços básicos de saúde, lazer, segurança, emprego e educação de boa qualidade para todos. Todos esses serviços são primordiais para se viver bem em sociedade. Nós precisamos, assim como os primeiros cristãos, ter esperança na vitória da democracia e na organização coletiva dos cidadãos. Para tanto, a educação, a meu ver, é a principal trincheira nessa luta, pois acredito ser por ela a solução para todos os nossos males.



                                                                                     Rio de Janeiro, 27 de março de 2016. 



[1] O Império Bizantino foi um dos impérios mais importantes da história. Nasceu no século IV quando o Império Romano dava sinais da queda de seu poder, principalmente por conta das invasões bárbaras nas suas fronteiras. Diante de tantos problemas, o Imperador Constantino transferiu a capital do seu império para a cidade do Oriente, Bizâncio, a qual mais tarde passou a ser chamada de Constantinopla.

[2] Eugen Berthold Friedrich Brecht, nasceu em 10/2/1898, em Augsburg, Alemanha e morreu em 15/8/1956, Berlim, Alemanha) foi um poeta, romancista, dramaturgo e teórico renovador do teatro moderno de nacionalidade alemã.

[3] A situação política a partir de 900 a.C, com a invasão da Grécia pelas tribos dóricas, foi marcada pelo surgimento das cidades - Estado, modelo que previa uma efetiva participação política dos cidadãos. O aparecimento da polis foi preponderante para as primeiras investigações filosóficas sobre o mundo natural, característica dos filósofos pré-socráticos, que buscavam a arché em elementos da natureza. A essa altura, com a crescente secularização da sociedade grega, os mitos deixavam de ser o eixo central das explicações sobre o mundo.

 [i] Cortella, Mario Sergio; Ribeiro, Renato Janine. Política para Não Ser Idiota – PAPIRUS.

[ii] Professor, Especialista em Educação e Poeta. Membro do CEBI-RJ/Sub-regional Campo Grande.

terça-feira, 15 de março de 2016

Luta de Classes
João Crispim Victorio[i]

Domingo nublado
Marcham pela Zona sul carioca
Em plena orla de Copacabana
Brancos de sorriso completo
Empresários ricos e afortunados
Vestem verde e amarelo...

Verde das matas
Matas que se dependessem deles
Não existiriam mais
Amarelo do ouro
Ouro que se dependesse deles
Valeria muito mais...

Tarde ensurdecedora
Centro do Rio de Janeiro
Marcham pela Av. Rio Branco
Mestiços de sorriso incompleto
Operários famélicos e marginalizados
Vestem apenas o vermelho...

Vermelho da vida
Vida que se dependesse deles
Seria para todos plenamente
Vermelho do sangue
Sangue que se dependesse deles
Não fluiria inutilmente...

No Brasil do momento
Marcham ricos contra pobres
Qualquer vento que sopre
A brasa pega fogo
A luta é de classes
Não é de cores...
 



[i] Professor, Especialista em Educação e Poeta. Membro do CEBI-RJ/Sub-regional Campo Grande.

segunda-feira, 7 de março de 2016


Todas as Mulheres

A todas as mulheres
Carmelitas, Almerindas, Marias,
Conceições, Creusas e Ritas...

Amarelas, brancas,
Negras, índias e mestiças
Gordas, magras, altas,
Baixas, feias e bonitas...

Informadas, alienadas,
Estudadas e analfabetas
Casadas, separadas, viúvas,
Amantes e solteiras...

A todas as mulheres
Que se viram nas noites
Que batalham os dias...

Que fazem história
Que geram vidas
Que somam vitórias...

Que vão à luta
Que descobrem o medo
Que ignoram preconceitos...

Que assumem seus desejos
Que têm coragem...

A todas essas mulheres
A honra
O reconhecimento
A flor da homenagem...


Poema de João Crispim Victorio
Extraído do livro: Poetas de Manguinhos (1997).
07 de março de 2016.

domingo, 6 de março de 2016

Amélia, uma mulher brasileira.
João Crispim Victorio[i]

“...você só pensa em luxo e riqueza
Tudo o que você vê, você quer
Ai, meu Deus, que saudade da Amélia
Aquilo sim é que era mulher...”[ii]

           
Essa história tem início na década de 1930, período em que o Brasil passa ser governado por Getúlio Vargas[1]. Época bastante conturbada devido aos efeitos da crise mundial de 1929 sobre o setor agrícola de exportação brasileiro e a crise política interna que levou Vargas a suspender a Constituição em vigor, fechar o Congresso Nacio­nal, as Assembleias estaduais e municipais e nomear pes­soas de sua confiança, na maioria tenentes, como interventores nos Governos dos estados.
Toda essa manobra tira o poder político da oligarquia cafeeira, concentrada no estado de São Paulo. Essa oligarquia, então, representada pelo Partido Republi­cano Paulista, se une ao Partido Democrático, surgindo a Frente Única Paulista. A união dessas duas forças passa a exercer forte pressão sobre Vargas, culminando num movimento arma­do para depor o Governo. Esse movimento durou três meses e foi derrotado, militarmente, pelo governo. Mas mesmo derrotados, obtiveram uma vitória política, a elabo­ração de uma nova Constituição para o País.
No final do mês de abril do ano de 1936, alguns anos após a entrada em vigor do Código Eleitoral, que mesmo em termos ainda facultativos, aplica nacionalmente o voto feminino, um significativo avanço para a sociedade brasileira da época, nasce Amélia. Nasce no momento de recolhimento do sol, que não brilhou intensamente enchendo de calor e vida o dia. O mesmo já estava se retirando por trás das montanhas cobertas por longas fileiras de cafezais. Era uma tarde um tanto fria em São Martinho, região da Serra do Mar, distrito do município de Alfredo Chaves no estado do Espírito Santo.
Toda essa região do Espírito Santo foi ocupada por imigrantes europeus, que durante o século XIX e meados do século XX desembarcaram nos portos brasileiros em busca de trabalho e consequentemente de vida melhor, conforme anunciavam as propagandas do governo brasileiro no exterior. Mas o que os europeus não sabiam é que na verdade o governo brasileiro queria apenas mão de obra para substituir os braços dos negros escravos nas lavouras.
No Brasil, o processo de imigração poder ser dividido por períodos históricos bem distintos. Tivemos, por exemplo, o período das tentativas fracassadas de tornar os nativos em trabalhadores escravos; o período do livre comércio de escravos africanos; o período de medidas progressistas que somadas à lei que proibia o tráfego dos chamados navios negreiros levaram a extinção da escravidão[2] e, por fim, os períodos das grandes guerras mundiais. Mas é só quando o trabalho livre ganha expressão social que aumenta a imigração e muitos dos europeus e asiáticos entre outros vão parar principalmente nas lavouras cafeeira do sudeste do Brasil.
Amélia tem sua origem a partir da chegada dos imigrantes italianos e alemães que durante o processo imigratório do final do século XIX desembarcaram no estado do Espírito Santo. Seu pai, Vittorio, fez toda a travessia do Atlântico na barriga da mãe, vindo nascer exatamente no dia em que chegaram às terras brasileiras. Sua mãe, Amélia, era filha de uma mulher alemã com um homem brasileiro. As duas famílias, assim como a de todos os outros imigrantes, ao chegarem foram logo se apropriando da cultura local sem deixar perder suas próprias raízes. É dessa mistura de etnias e de culturas que nasce Amélia, a nona e última filha do casal Vittorio De Monti e Amélia Santos.
O nascimento de Amélia é marcado por uma fatalidade que abre uma profunda ferida, que mesmo depois de curada deixa uma eterna cicatriz. Sua mãe não resistiu as complicações do parto e veio a óbito. Em homenagem à mãe, a menina recebe seu nome, Amélia. Vittorio De Monti, seu pai, era um homem tranquilo e muito religioso, tinha grande devoção a Santo Antônio. Mas a morte da esposa o deixou numa situação bastante complicada. Teria que dar conta e cuidar de nove filhos, sendo Amélia ainda recém-nascida, cuidar do pedaço de terra que possuía, cuidar das aulas para as crianças da escola onde era professor, de ler e escrever cartas e artigos que recebia e as enviava à sua terra natal, a Itália.
Amélia foi crescendo sob os cuidados do pai e dos irmãos mais velhos, que aos poucos iam se tornando adultos e assumindo algumas responsabilidades da casa. Sem exceção, nenhum dos filhos de Vittorio pôde se dedicar aos estudos, uma contradição já que o pai era professor, frequentaram apenas os primeiros anos de escolarização. Pois, todos tinham de estudar e trabalhar em casa e na roça para garantirem o sustento. Diante disso, não restavam muitas alternativas para os já jovens filhos de Vittorio, senão o casamento para as meninas e para os meninos, o êxodo rural[3], ou seja, a aventura de sair em busca de oportunidades de emprego e de uma vida melhor nos grandes centros urbanos.
Foi nesse contexto que Amélia veio crescendo e logo arrumou uma pessoa para casar, mesmo ainda muito jovem. O rapaz escolhido era bem conhecido na região, devido à má fama. Além dos motivos já citados, Amélia também foi vitima de violência sexual dentro da própria casa e agora se encontra grávida. Casar seria a melhor saída para sua situação, pois o que poderia alegar a seu favor, o que e a quem poderia denunciar, se a mulher daquela época era criada para procriar, servir ao marido e aos filhos. A mulher não podia se interessar pela escola, não devia saber ler e escrever para não trocar cartas com o namorado. Então, só lhe restava o casamento e aí Amélia sofre outra violência, deixa de ter o sobrenome do pai e passa a assinar o sobrenome do marido.
 Logo que nasceu seu primeiro filho, na década de 1950, com ele também chegam às dificuldades financeiras e de convívio doméstico. O homem com quem Amélia se casou tinha hábitos de beber de maneira descontrolada, de fazer pequenos furtos nas casas vizinhas e de ser violento com ela e com o filho, que não era dele. Viver próximo aos familiares, para Amélia, foi ficando cada vez mais insustentável, havia tristeza e vergonha em seus olhos. A solução encontrada foi realizar o êxodo, conforme seus irmãos haviam feito alguns anos atrás. Mas para tanto era necessário deixar seu filho na casa de um dos seus irmãos que preferiu resistir e ficar trabalhando a terra.
Assim como seus outros três irmãos, Amélia e seu marido, em 1955, resolvem vir para o Rio de Janeiro, a Cidade maravilhosa onde o Cristo Redentor os aguardava de braços abertos. Alugaram uma casa e foram morar num bairro do subúrbio, os chamados bairros dormitórios, um problema social que só foram entender muito tempo depois. Os dois passaram pouco tempo procurando emprego, pois assim como seu pai, Amélia também se tornou uma pessoa religiosa e conhecendo a história de São Sebastião, o padroeiro da cidade onde agora mora, passou ser devota do santo. Há anos acompanhou à procissão no dia 20 de janeiro, fez suas orações pedindo e agradecendo. Foi por meio de sua fé incondicional, acredita, ela, que logo arrumou emprego. Amélia começa a trabalhar como doméstica e o seu marido como ajudante de pedreiro, mas não foi preciso muito, para que ele se tornasse um pedreiro profissional. Acordar cedo, dormir tarde, viajar em ônibus e trens lotados, trabalhar nos finais de semana e fazer hora extra, agora é a rotina do casal.
Amélia foi levando sua vida aos trancos e barrancos e assim passaram-se mais de 30 anos vivendo na Cidade maravilhosa. Tiveram cinco filhos, um a cada ano, totalizando seis, contando com o mais velho que ainda permanecia no Espírito Santo. Seu marido continuava bebendo muito e agindo de forma violenta contra ela, apesar das novenas feitas a São Sebastião. A situação agora era um pouco pior, além da bebida ele também tinha arrumado uma amante, essa mais esperta pegava a maior parte do seu pouco dinheiro que ganhava como pedreiro. Amélia, depois de tantos anos apanhando, aprendeu a revidar a violência do marido e quando brigavam, apesar de ficar cheia de hematomas, já não mais ficava fora de casa dormindo ao relento, mas sim o colocava para fora. Essa tormenta só terminou quando seu marido foi assassinado a facadas por outro homem tomado pela dor da traição.
Amélia, atualmente aos 80 anos de idade e 60 de Rio de Janeiro, vive de favor na casa dos filhos. Filhos esses que não poderiam deixar de ser iguais aqueles que crescem assistindo e muitas das vezes enfrentando de frente os problemas das muitas formas de violência familiar. Amélia lamenta o fato de não ter existido na sua época uma lei que protegesse as mulheres, como temos hoje a Lei Maria da Penha[4], de não ter sido o Brasil, governado como vem sendo pelos dois últimos presidentes, inclusive por uma mulher, que se preocupam de verdade em proteger as famílias por meio de programas sociais como o Luz para Todos, programa que tem por objetivo acabar com a exclusão elétrica concentrada nas localidades de menor Índice de Desenvolvimento Humano do país. O Minha Casa Minha Vida, programa que tem por objetivo proporcionar ao cidadão brasileiro, através da parceria com empresas, estados e municípios o acesso ao financiamento da casa própria em condições especiais no qual as mulheres são as primeiras beneficiadas e O Bolsa Família, programa que tem por objetivo a transferência direta de renda, para às famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza em todo o país, garantindo a essas famílias o direito à alimentação e o acesso à educação e à saúde.
Amélia voltou uma única vez a São Martinho, mas o peso do seu primeiro filho ficou apenas sobre seus ombros, isso a deixou muito triste e magoada com seus irmãos. Ouvindo, hoje, sua voz ainda firme e seu pensamento lúcido, fico imaginando quantas foram às vezes que essa mulher pensou em luxo, em riqueza e se tudo o que viu quis ter. Assim como tantas outras mulheres da sua época, ela vem, ainda hoje, aprendendo com o tempo e, melhor, ensinando o pouco que aprendeu. 



Rio de Janeiro, 06 de março de 2016. 





[1] Getúlio Dornelles Vargas nasceu em 1882, na cidade de São Borja (RS) e faleceu em 1954, na cidade do Rio de Janeiro (RJ). Getúlio governou o Brasil durante dois mandatos, foi o presidente que ficou mais tempo no governo. Os seus governos se deram entre os anos de 1930 a 1945 e de 1951 a 1954. Entre 1937 e 1945 instalou a fase de chamada de Estado Novo.
[2] Ao longo do século 19, a legislação escravista no Brasil sofreu inúmeras mudanças como consequência das pressões internacionais e dos movimentos sociais abolicionistas. Em 1850, foi decretada a Lei Eusébio de Queirós, que extinguiu definitivamente o tráfico negreiro no país. Foi uma solução encontrada pelo governo monárquico brasileiro diante das constantes pressões e ameaças da Inglaterra, nação que estava determinada a acabar com o tráfico negreiro. Em 1871, foi decretada a Lei do Ventre Livre, estabelecia que a partir de 1871 todos os filhos de escravos seriam considerados livres. Em 1885, foi promulgada a Lei dos Sexagenários, estabelecendo que depois de completar 65 anos os escravos estariam em liberdade e em 1888, foi aprovada a Lei Áurea, que previa o fim definitivo da escravidão. O Brasil, porém, carrega o fardo histórico de ter sido um dos últimos países do mundo a abolir a escravidão.
[3] Êxodo rural é o deslocamento de pessoas da zona rural (campo) para a zona urbana (cidades). É um fenômeno social que ocorre quando os habitantes do campo visam obter condições de vida melhor. Os motivos que levam os habitantes do campo para as grandes cidades são a busca por emprego, a mecanização da produção rural, a fuga da seca, a qualidade do ensino e a falta de infraestrutura e serviços públicos básicos. 
[4] Estabelece que todos os casos de violência doméstica e intrafamiliar é crime, deve ser apurado através de inquérito policial, remetido ao Ministério Público e julgados nos Juizados Especializados de Violência Doméstica Contra a Mulher, criados a partir dessa legislação. 




[i] Professor, Especialista em Educação e Poeta. Membro do CEBI-RJ/Sub-regional Campo Grande.
[ii] Ai, que saudades da Amélia – Mário Lago

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