domingo, 6 de março de 2016

Amélia, uma mulher brasileira.
João Crispim Victorio[i]

“...você só pensa em luxo e riqueza
Tudo o que você vê, você quer
Ai, meu Deus, que saudade da Amélia
Aquilo sim é que era mulher...”[ii]

           
Essa história tem início na década de 1930, período em que o Brasil passa ser governado por Getúlio Vargas[1]. Época bastante conturbada devido aos efeitos da crise mundial de 1929 sobre o setor agrícola de exportação brasileiro e a crise política interna que levou Vargas a suspender a Constituição em vigor, fechar o Congresso Nacio­nal, as Assembleias estaduais e municipais e nomear pes­soas de sua confiança, na maioria tenentes, como interventores nos Governos dos estados.
Toda essa manobra tira o poder político da oligarquia cafeeira, concentrada no estado de São Paulo. Essa oligarquia, então, representada pelo Partido Republi­cano Paulista, se une ao Partido Democrático, surgindo a Frente Única Paulista. A união dessas duas forças passa a exercer forte pressão sobre Vargas, culminando num movimento arma­do para depor o Governo. Esse movimento durou três meses e foi derrotado, militarmente, pelo governo. Mas mesmo derrotados, obtiveram uma vitória política, a elabo­ração de uma nova Constituição para o País.
No final do mês de abril do ano de 1936, alguns anos após a entrada em vigor do Código Eleitoral, que mesmo em termos ainda facultativos, aplica nacionalmente o voto feminino, um significativo avanço para a sociedade brasileira da época, nasce Amélia. Nasce no momento de recolhimento do sol, que não brilhou intensamente enchendo de calor e vida o dia. O mesmo já estava se retirando por trás das montanhas cobertas por longas fileiras de cafezais. Era uma tarde um tanto fria em São Martinho, região da Serra do Mar, distrito do município de Alfredo Chaves no estado do Espírito Santo.
Toda essa região do Espírito Santo foi ocupada por imigrantes europeus, que durante o século XIX e meados do século XX desembarcaram nos portos brasileiros em busca de trabalho e consequentemente de vida melhor, conforme anunciavam as propagandas do governo brasileiro no exterior. Mas o que os europeus não sabiam é que na verdade o governo brasileiro queria apenas mão de obra para substituir os braços dos negros escravos nas lavouras.
No Brasil, o processo de imigração poder ser dividido por períodos históricos bem distintos. Tivemos, por exemplo, o período das tentativas fracassadas de tornar os nativos em trabalhadores escravos; o período do livre comércio de escravos africanos; o período de medidas progressistas que somadas à lei que proibia o tráfego dos chamados navios negreiros levaram a extinção da escravidão[2] e, por fim, os períodos das grandes guerras mundiais. Mas é só quando o trabalho livre ganha expressão social que aumenta a imigração e muitos dos europeus e asiáticos entre outros vão parar principalmente nas lavouras cafeeira do sudeste do Brasil.
Amélia tem sua origem a partir da chegada dos imigrantes italianos e alemães que durante o processo imigratório do final do século XIX desembarcaram no estado do Espírito Santo. Seu pai, Vittorio, fez toda a travessia do Atlântico na barriga da mãe, vindo nascer exatamente no dia em que chegaram às terras brasileiras. Sua mãe, Amélia, era filha de uma mulher alemã com um homem brasileiro. As duas famílias, assim como a de todos os outros imigrantes, ao chegarem foram logo se apropriando da cultura local sem deixar perder suas próprias raízes. É dessa mistura de etnias e de culturas que nasce Amélia, a nona e última filha do casal Vittorio De Monti e Amélia Santos.
O nascimento de Amélia é marcado por uma fatalidade que abre uma profunda ferida, que mesmo depois de curada deixa uma eterna cicatriz. Sua mãe não resistiu as complicações do parto e veio a óbito. Em homenagem à mãe, a menina recebe seu nome, Amélia. Vittorio De Monti, seu pai, era um homem tranquilo e muito religioso, tinha grande devoção a Santo Antônio. Mas a morte da esposa o deixou numa situação bastante complicada. Teria que dar conta e cuidar de nove filhos, sendo Amélia ainda recém-nascida, cuidar do pedaço de terra que possuía, cuidar das aulas para as crianças da escola onde era professor, de ler e escrever cartas e artigos que recebia e as enviava à sua terra natal, a Itália.
Amélia foi crescendo sob os cuidados do pai e dos irmãos mais velhos, que aos poucos iam se tornando adultos e assumindo algumas responsabilidades da casa. Sem exceção, nenhum dos filhos de Vittorio pôde se dedicar aos estudos, uma contradição já que o pai era professor, frequentaram apenas os primeiros anos de escolarização. Pois, todos tinham de estudar e trabalhar em casa e na roça para garantirem o sustento. Diante disso, não restavam muitas alternativas para os já jovens filhos de Vittorio, senão o casamento para as meninas e para os meninos, o êxodo rural[3], ou seja, a aventura de sair em busca de oportunidades de emprego e de uma vida melhor nos grandes centros urbanos.
Foi nesse contexto que Amélia veio crescendo e logo arrumou uma pessoa para casar, mesmo ainda muito jovem. O rapaz escolhido era bem conhecido na região, devido à má fama. Além dos motivos já citados, Amélia também foi vitima de violência sexual dentro da própria casa e agora se encontra grávida. Casar seria a melhor saída para sua situação, pois o que poderia alegar a seu favor, o que e a quem poderia denunciar, se a mulher daquela época era criada para procriar, servir ao marido e aos filhos. A mulher não podia se interessar pela escola, não devia saber ler e escrever para não trocar cartas com o namorado. Então, só lhe restava o casamento e aí Amélia sofre outra violência, deixa de ter o sobrenome do pai e passa a assinar o sobrenome do marido.
 Logo que nasceu seu primeiro filho, na década de 1950, com ele também chegam às dificuldades financeiras e de convívio doméstico. O homem com quem Amélia se casou tinha hábitos de beber de maneira descontrolada, de fazer pequenos furtos nas casas vizinhas e de ser violento com ela e com o filho, que não era dele. Viver próximo aos familiares, para Amélia, foi ficando cada vez mais insustentável, havia tristeza e vergonha em seus olhos. A solução encontrada foi realizar o êxodo, conforme seus irmãos haviam feito alguns anos atrás. Mas para tanto era necessário deixar seu filho na casa de um dos seus irmãos que preferiu resistir e ficar trabalhando a terra.
Assim como seus outros três irmãos, Amélia e seu marido, em 1955, resolvem vir para o Rio de Janeiro, a Cidade maravilhosa onde o Cristo Redentor os aguardava de braços abertos. Alugaram uma casa e foram morar num bairro do subúrbio, os chamados bairros dormitórios, um problema social que só foram entender muito tempo depois. Os dois passaram pouco tempo procurando emprego, pois assim como seu pai, Amélia também se tornou uma pessoa religiosa e conhecendo a história de São Sebastião, o padroeiro da cidade onde agora mora, passou ser devota do santo. Há anos acompanhou à procissão no dia 20 de janeiro, fez suas orações pedindo e agradecendo. Foi por meio de sua fé incondicional, acredita, ela, que logo arrumou emprego. Amélia começa a trabalhar como doméstica e o seu marido como ajudante de pedreiro, mas não foi preciso muito, para que ele se tornasse um pedreiro profissional. Acordar cedo, dormir tarde, viajar em ônibus e trens lotados, trabalhar nos finais de semana e fazer hora extra, agora é a rotina do casal.
Amélia foi levando sua vida aos trancos e barrancos e assim passaram-se mais de 30 anos vivendo na Cidade maravilhosa. Tiveram cinco filhos, um a cada ano, totalizando seis, contando com o mais velho que ainda permanecia no Espírito Santo. Seu marido continuava bebendo muito e agindo de forma violenta contra ela, apesar das novenas feitas a São Sebastião. A situação agora era um pouco pior, além da bebida ele também tinha arrumado uma amante, essa mais esperta pegava a maior parte do seu pouco dinheiro que ganhava como pedreiro. Amélia, depois de tantos anos apanhando, aprendeu a revidar a violência do marido e quando brigavam, apesar de ficar cheia de hematomas, já não mais ficava fora de casa dormindo ao relento, mas sim o colocava para fora. Essa tormenta só terminou quando seu marido foi assassinado a facadas por outro homem tomado pela dor da traição.
Amélia, atualmente aos 80 anos de idade e 60 de Rio de Janeiro, vive de favor na casa dos filhos. Filhos esses que não poderiam deixar de ser iguais aqueles que crescem assistindo e muitas das vezes enfrentando de frente os problemas das muitas formas de violência familiar. Amélia lamenta o fato de não ter existido na sua época uma lei que protegesse as mulheres, como temos hoje a Lei Maria da Penha[4], de não ter sido o Brasil, governado como vem sendo pelos dois últimos presidentes, inclusive por uma mulher, que se preocupam de verdade em proteger as famílias por meio de programas sociais como o Luz para Todos, programa que tem por objetivo acabar com a exclusão elétrica concentrada nas localidades de menor Índice de Desenvolvimento Humano do país. O Minha Casa Minha Vida, programa que tem por objetivo proporcionar ao cidadão brasileiro, através da parceria com empresas, estados e municípios o acesso ao financiamento da casa própria em condições especiais no qual as mulheres são as primeiras beneficiadas e O Bolsa Família, programa que tem por objetivo a transferência direta de renda, para às famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza em todo o país, garantindo a essas famílias o direito à alimentação e o acesso à educação e à saúde.
Amélia voltou uma única vez a São Martinho, mas o peso do seu primeiro filho ficou apenas sobre seus ombros, isso a deixou muito triste e magoada com seus irmãos. Ouvindo, hoje, sua voz ainda firme e seu pensamento lúcido, fico imaginando quantas foram às vezes que essa mulher pensou em luxo, em riqueza e se tudo o que viu quis ter. Assim como tantas outras mulheres da sua época, ela vem, ainda hoje, aprendendo com o tempo e, melhor, ensinando o pouco que aprendeu. 



Rio de Janeiro, 06 de março de 2016. 





[1] Getúlio Dornelles Vargas nasceu em 1882, na cidade de São Borja (RS) e faleceu em 1954, na cidade do Rio de Janeiro (RJ). Getúlio governou o Brasil durante dois mandatos, foi o presidente que ficou mais tempo no governo. Os seus governos se deram entre os anos de 1930 a 1945 e de 1951 a 1954. Entre 1937 e 1945 instalou a fase de chamada de Estado Novo.
[2] Ao longo do século 19, a legislação escravista no Brasil sofreu inúmeras mudanças como consequência das pressões internacionais e dos movimentos sociais abolicionistas. Em 1850, foi decretada a Lei Eusébio de Queirós, que extinguiu definitivamente o tráfico negreiro no país. Foi uma solução encontrada pelo governo monárquico brasileiro diante das constantes pressões e ameaças da Inglaterra, nação que estava determinada a acabar com o tráfico negreiro. Em 1871, foi decretada a Lei do Ventre Livre, estabelecia que a partir de 1871 todos os filhos de escravos seriam considerados livres. Em 1885, foi promulgada a Lei dos Sexagenários, estabelecendo que depois de completar 65 anos os escravos estariam em liberdade e em 1888, foi aprovada a Lei Áurea, que previa o fim definitivo da escravidão. O Brasil, porém, carrega o fardo histórico de ter sido um dos últimos países do mundo a abolir a escravidão.
[3] Êxodo rural é o deslocamento de pessoas da zona rural (campo) para a zona urbana (cidades). É um fenômeno social que ocorre quando os habitantes do campo visam obter condições de vida melhor. Os motivos que levam os habitantes do campo para as grandes cidades são a busca por emprego, a mecanização da produção rural, a fuga da seca, a qualidade do ensino e a falta de infraestrutura e serviços públicos básicos. 
[4] Estabelece que todos os casos de violência doméstica e intrafamiliar é crime, deve ser apurado através de inquérito policial, remetido ao Ministério Público e julgados nos Juizados Especializados de Violência Doméstica Contra a Mulher, criados a partir dessa legislação. 




[i] Professor, Especialista em Educação e Poeta. Membro do CEBI-RJ/Sub-regional Campo Grande.
[ii] Ai, que saudades da Amélia – Mário Lago

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