Ciência e Ideologia
João Crispim Victorio[i]
À primeira vista, pode parecer estranho dedicarmos atenção à questão da
ideologia, tema controverso e polêmico que nunca chega a um bom termo. Mas se
tentarmos entender a resistência dos professores às mudanças por esse viés,
veremos que a pertinência é grande e que se o fim não justifica os meios pode
pelo menos facilitar o entendimento das atitudes de muitos.
Para Chaui (2000, p.173)[1], a sociedade moderna gera
três grandes formas de alienação - social, econômica e intelectual -, que
seriam as responsáveis pelo surgimento, implantação e fortalecimento da
ideologia. Afirma Chaui: a alienação
social se exprime numa “teoria” do conhecimento espontânea, formando o senso
comum da sociedade. Por seu intermédio, são imaginadas explicações e
justificativas para a realidade tal como é diretamente percebida e vivida (Chaui,
2000, p.174).
Dentre os muitos exemplos, a mesma destaca a questão da pobreza que é
comumente associada à preguiça, ignorância ou, ainda, por vontade divina ou
inferioridade natural. Essa “visão” da intelectualidade dominante que descreve
e explica o mundo a partir de seus próprios interesses, e que passa a ser
incorporada pelo senso comum é a ideologia.
Na verdade, uma das funções da ideologia é
criar uma falsa sensação de igualdade, já que somos
todos humanos e pertencemos a uma mesma etnia e nação. Mais ainda, que
as diferenças, as desigualdades existentes são causadas por diferenças
individuais de talento, de inteligência, de força de vontade maior ou menor.
Assim, cria-se uma espécie de ilusão social que faz com que as classes aceitem
as condições em que vivem, gerando um conformismo aparentemente natural, sem
considerar as contradições existentes entre a vida real e as ideias que temos.
Há nesse processo, ainda segundo Chaui,
mecanismos que favorecem a ideologia, que fazem com que o sucesso de sua
empreitada seja assustador, justamente porque ela opera como o inconsciente,
fabricando imagens e sistemas.
De modo semelhante, quando a ideologia
opera no imaginário social, a mesma procura retirar das nossas experiências, do
modo como vivemos cotidianamente o tônus que irá moldá-la em conjunto coerente
e lógico que a sistematiza, transformando-a em realidade e em norma e regra de
conduta ou comportamento. Se, por exemplo, acreditamos que nesse jogo de
representações os alunos de escolas públicas não aprendem, todo o comportamento
dos envolvidos no contexto educacional será pautado por atuações que tomarão
por base esse princípio.
Pondo de lado a questão conceitual de
ideologia, ou seja, dispensando-se as diversas definições atribuídas ao termo,
entendemos que toda atividade humana se encontra impregnada de princípios e
crenças que muito facilmente podemos chamar de ideologia. Assim, quando o
professor ensina, o faz certo de que sua iniciativa é a mais razoável possível
e, ainda que não esteja muito convicto de sua proposta, foi dessa maneira que
aprendeu e é assim que sabe passar o conhecimento. A resistência, nesse caso,
encontra-se ligada a princípios ideologizantes que não são rompidos sem grandes
esforços. Quando falamos de “princípios ideologizantes”, estamos nos referindo
à divisão proposta por Romão (2002, p.28)[2] que,
numa tentativa de açambarcar os diversos conceitos de ciência e ideologia,
enquadrando-os em dois grandes grupos, colocou de um lado os chamados
positivistas e, do outro, os dialéticos.
O pensamento positivista tem início a
partir do século XVIII quando Immanuel Kant desenvolve importantes reflexões
sobre as possibilidades e limites da razão. Mas, é no século XIX que tem suas ideias
formalizadas por Augusto Comte. Segundo Iskandar e Leal (2002, p. 89)[3], “o positivismo admite apenas o que é real,
verdadeiro, inquestionável, aquilo que se fundamenta na experiência”. Esse
pensamento influenciou de maneira considerável a sociedade nos séculos XIX e
XX.
Por outro lado, o pensamento dialético
vem sendo construído desde Platão e Aristóteles, significando o confronto ou a
comparação de opiniões por meio do diálogo, para que dessa relação nasça à
verdade. Segundo Abrão (2004, p.353), “Na
Idade Média, a dialética torna-se disputatio, isto é, um confronto de opiniões,
por vezes meramente retórico, em que a produção do melhor argumento para vencer
o adversário passa a ser visto como fim em si”.
Friedrich Hegel ver na dialética não
apenas uma lógica ou um método. Segundo Abrão (2004, p.354)[4], “Mas a dialética hegeliana é antes uma
teoria do ser, uma ontologia. Não apenas a maneira ‘correta’ de pensar a
realidade e sim a própria estrutura da realidade em todos os seus aspectos”.
Essa visão dicotômica do pensamento
positivista e dialético pode favorece o entendimento porque atenua o postulado
exato da ciência, inserindo uma perspectiva discursiva que poderia passar
desapercebida caso quiséssemos avaliar o trabalho do professor de química pelo
lado racional apenas.
No grupo dos positivistas devem ser incluídos todos os que
concebem ciência como um quadro pronto e acabado de axiomas, postulados,
descrições, definições, conceitos, interpretações, teorias e leis, aplicáveis
ao conhecimento de parcela da realidade (Romão, 2002, p.28).
Assim concebida, a ciência passa a ser
um “pacote” de definições e leis que precisam ser passadas aos alunos, e muito
do sucesso ou do fracasso escolar, dependerá da fluência desses conceitos, do
trânsito fácil ou difícil dessas informações entre professor e aluno.
O aspecto objetivo de
que se reveste a ciência no grupo dos positivistas torna-a inquestionável,
universalizante, pois é assim que tem de ser e é assim que será, em qualquer
canto que se vá. A veracidade dos fatos será determinada por uma análise lógica
que exclui as contradições internas e independe de referenciais externos, ou
seja, é na expressão que encontramos o significado da mensagem. Romão (2002)
complementa:
O discurso científico opõe-se ao discurso ideológico, pois esse
corresponde a uma distorção da realidade. Enquanto o primeiro se constitui de
juízos de fato, o segundo se constrói por juízos de valor. Portanto a ideologia
opõe-se à ciência, na medida em que a primeira corre os riscos das distorções
derivadas das aspirações, projeções e ideais de seus formuladores, enquanto a
segunda se projeta como sósia da realidade. Romão (2002, p.29).
Do exposto sobre o pensamento positivista, depreende-se que, na
visão de Romão, ciência e ideologia ocupam campos opostos e que de maneira
geral o conceito de ciência desenvolvido ou aplicado é positivista, dado um
velho preconceito de que o ensino deve ter sempre um caráter dogmático.
É conjugando teoria e prática, mantendo
a biunivocidade entre uma e outra que vamos garantir a neutralidade do
cientista, que poderá, então, dizer que há ciência de fato.
Sem querer generalizar demais, pode-se
dizer que uma parcela significativa dos professores que atuam no ensino
fundamental e médio, senão a maioria, adota o modelo positivista, o que só
reforça o aspecto dogmático do ensino. Estes, muito provavelmente, vêem o mundo
através de uma lente objetiva e acreditam que a vida já está prescrita num
grande livro, só restando ao homem a apreensão e o conhecimento das verdades
absolutas.
Segundo Romão (2002, p. 30), todos os
que concebem a ciência como um processo podem ser incluídos no rol dos
dialéticos. Quando o mesmo fala em ciência como um processo quer, na realidade,
adiantar-nos que a compreensão positiva da realidade deveria ser, “a correção progressiva dos dados, da
experiência e da reflexão, no sentido de sua inserção no Ser, de modo a
diminuir as distorções ontologicamente inevitáveis”. (Goldmann, 1978,
p.180)[5].
De uma outra forma, seria o mesmo que
dizer que a ciência não é a adequação de um princípio à realidade, isto é, não
se trata da imposição de um dado tido como certo à realidade da vida, “mas uma correção progressiva das distorções
induzidas pelo entendimento humano na abordagem da realidade, tanto em função
de sua ontologia quanto de sua ideologia”. (Romão, 2002, p.30).
Do exposto, Romão faz algumas inferências:
1º As afirmações a respeito de um problema não constituem um
quadro pronto e acabado, mas algo relativo às condições histórico-sociais de
quem os formulou.
2º Muito embora em ciência se pregue a objetividade, a
interferência da subjetividade é inequívoca.
3º A verdade absoluta e universal inexiste, já que a mesma será
determinada por condições específicas tanto de produção quanto de recepção.
4º O exame crítico de uma afirmação passa por um processo que leva
em conta tanto a análise lógica, quanto a sociológica, transcendente ou
pragmática.
5º A ideologia não é independente nem se opõe à ciência, mas dela
faz parte como um discurso consonante.
6º A ideologia não é independente e oposta a ciência, mais dela
faz parte, na medida em que não se constitui num discurso, mas num nível de
significação de qualquer discurso, inclusive do científico.
7º O distanciamento do cientista em relação aos fatos estudados é
impossível e a neutralidade, um mito.
Em síntese, diante do quadro relacional
em que ciência e ideologia se encontram, há que se buscar fora desse eixo
estruturador razões outras que nos permitam avaliar o quadro do ensino de
Química nas escolas de Ensino Fundamental e Médio.
[1] CHAUI, Marilena . Convite
à filosofia. 12. ed. São Paulo: Ática, 2000.
[2] ROMÃO, José
Eustáquio. Avaliação Dialógica: desafios
e perspectivas. 4. ed. São Paulo: Cortez: Instituto Paulo Freire, 2002.
[3] ISKANDAR,
J.I;LEAL, M.R. Sobre o positivismo. Revista Diálogo Educacional, Curitiba,v.3,
n.7, p 89-94, 2002.
[4] ABRÃO,
B.S. História da Filosofia. Org.
Editora Nova Cultura. São Paulo, 2004
[5] GOLDMANN, L. Epistémologie et philosophie politique. Paris, Denoel/Gonthier. 1978.
[i] Professor, Especialista
em Educação e Poeta.
Texto integrante da
monografia: Concepções e Práticas
Pedagógicas do Ensino de Ciências: Um Estudo de Caso no Ensino Fundamental.
Apresentada ao Programa de Especialização em Ensino de Ciências do Centro
Federal de Educação Tecnológica de Química de Nilópolis - RJ.